15. Aritmética de ponto flutuante: problemas e limitações

Números de ponto flutuante são representados no hardware do computador como frações binárias (base 2). Por exemplo, a fração decimal:

0.125

tem o valor 1/10 + 2/100 + 5/1000, e da mesma maneira a fração binária:

0.001

tem o valor 0/2 + 0/4 + 1/8. Essas duas frações têm valores idênticos, a única diferença real é que a primeira está representada na forma de frações base 10, e a segunda na base 2.

Infelizmente, muitas frações decimais não podem ser representadas precisamente como frações binárias. O resultado é que, em geral, os números decimais de ponto flutuante que você digita acabam sendo armazenados de forma apenas aproximada, na forma de números binários de ponto flutuante.

O problema é mais fácil de entender primeiro em base 10. Considere a fração 1/3. Podemos representá-la aproximadamente como uma fração base 10:

0.3

ou melhor,

0.33

ou melhor,

0.333

e assim por diante. Não importa quantos dígitos você está disposto a escrever, o resultado nunca será exatamente 1/3, mas será uma aproximação de cada vez melhor de 1/3.

Da mesma forma, não importa quantos dígitos de base 2 estejas disposto a usar, o valor decimal 0.1 não pode ser representado exatamente como uma fração de base 2. No sistema de base 2, 1/10 é uma fração binária que se repete infinitamente:

0.0001100110011001100110011001100110011001100110011...

Se parares em qualquer número finito de bits, obterás uma aproximação. Hoje em dia, na maioria dos computadores, as casas decimais são aproximados usando uma fração binária onde o numerado utiliza os primeiros 53 bits iniciando no bit mais significativo e tendo como denominador uma potência de dois. No caso de 1/10, a fração binária seria 602879701896397 / 2 ** 55 o que chega bem perto, mas mesmo assim, não é igual ao valor original de 1/10.

É fácil esquecer que o valor armazenado é uma aproximação da fração decimal original, devido à forma como os floats são exibidos no interpretador interativo. O Python exibe apenas uma aproximação decimal do verdadeiro valor decimal da aproximação binária armazenada pela máquina. Se o Python exibisse o verdadeiro valor decimal da aproximação binária que representa o decimal 0.1, seria necessário mostrar:

>>> 0.1
0.1000000000000000055511151231257827021181583404541015625

Contém muito mais dígitos do que é o esperado e utilizado pela grande maioria dos desenvolvedores, portanto, o Python limita o número de dígitos exibidos, apresentando um valor arredondado, ao invés de mostrar todas as casas decimais:

>>> 1 / 10
0.1

Lembre-se, mesmo que o resultado impresso seja o valor exato de 1/10, o valor que verdadeiramente estará armazenado será uma fração binária representável que mais se aproxima.

Curiosamente, existem muitos números decimais diferentes que compartilham a mesma fração binária aproximada. Por exemplo, os números 0.1 ou o 0.10000000000000001 e 0.1000000000000000055511151231257827021181583404541015625 são todos aproximações de 3602879701896397/2 ** 55. Como todos esses valores decimais compartilham um mesma de aproximação, qualquer um poderá ser exibido enquanto for preservado o invariante eval(repr(x)) == x.

Historicamente, o prompt do Python e a função embutida repr() utilizariam o que contivesse 17 dígitos significativos,``0.10000000000000001``. Desde a versão do Python 3.1, o Python (na maioria dos sistemas) agora é possível optar pela forma mais reduzida, exibindo simplesmente o número 0.1.

Note que essa é a própria natureza do ponto flutuante binário: não é um bug do Python, e nem é um bug do seu código. Essa situação pode ser observada em todas as linguagens que usam as instruções aritméticas de ponto flutuante do hardware (apesar de algumas linguagens não mostrarem a diferença, por padrão, ou em todos os modos de saída).

Para obter um valor mais agradável, poderás utilizar a formatação de sequência de caracteres sendo capaz de gerar um número limitado de dígitos significativos:

>>> format(math.pi, '.12g')  # give 12 significant digits
'3.14159265359'

>>> format(math.pi, '.2f')   # give 2 digits after the point
'3.14'

>>> repr(math.pi)
'3.141592653589793'

É importante perceber que tudo não passa de pura ilusão: estas simplesmente arredondando a exibição da verdadeira maquinaria do valor.

Uma ilusão pode gerar outra. Por exemplo, uma vez que 0,1 não é exatamente 1/10, somar três vezes o valor 0.1, não garantirá que o resultado seja exatamente 0,3, isso porque:

>>> .1 + .1 + .1 == .3
False

Inclusive, uma vez que o 0,1 não consegue aproximar-se do valor exato de 1/10 e 0,3 não pode se aproximar mais do valor exato de 3/10, temos então que o pré-arredondamento com a função round() não servirá como ajuda:

>>> round(.1, 1) + round(.1, 1) + round(.1, 1) == round(.3, 1)
False

Embora os números não possam se aproximar mais dos exatos valores que desejamos, a função round() poderá ser útil na obtenção do pós-arredondamento para que os resultados contendo valores inexatos se tornem comparáveis uns aos outros:

>>> round(.1 + .1 + .1, 10) == round(.3, 10)
True

A aritmética de ponto flutuante binário traz muitas surpresas como essas. O problema do “0.1” é explicado em detalhes precisos abaixo, na seção “Erro de Representação”. Para uma descrição mais completa de outras surpresas que comumente nos deparamos, veja a seção The Perils of Floating Point que contém diversos exemplos distintos.

Como dizemos perto do final, “não há respostas fáceis”. Ainda assim, não se percam indevidamente no uso do ponto flutuante! Os erros nas operações do tipo float do Python são heranças do hardware de ponto flutuante e, a maioria dos computadores estão na ordem de não mais do que 1 parte em 2**53 por operação. Isso é mais do que o suficiente para a maioria das tarefas, portanto, é importante lembrar que não se trata de uma aritmética decimal e que toda operação com o tipo float poderá via a apresentar novos problemas referentes ao arredondamento.

Embora existam casos patológicos, na maior parte das vezes, terás como resultado final o valor esperado, se simplesmente arredondares a exibição final dos resultados para a quantidade de dígitos decimais que esperas a função str() geralmente será o suficiente, e , para seja necessário um valor refinado, veja os especificadores de formato str.format() contido na seção Sintaxe das strings de formato.

Para as situações que exijam uma representação decimal exata, experimente o módulo decimal que possui, a implementação de uma adequada aritmética decimal bastante utilizada nas aplicações contábeis e pelas aplicações que demandam alta precisão.

Uma outra forma de obter uma aritmética exata tem suporte pelo módulo fracções que implementa a aritmética baseada em números racionais (portanto, os números fracionários como o 1/3 conseguem uma representação precisa).

Caso necessites fazer um intenso uso das operações de ponto flutuante, é importante que conheças o pacote Numerical Python e, também é importante dizer, que existem diversos pacotes destinados ao trabalho intenso com operações matemáticas e estatísticas que são fornecidas pelo projeto SciPy. Veja <https://scipy.org>.

O Python fornece ferramentas que podem ajudar nessas raras ocasiões em que realmente faz necessitas conhecer o valor exato de um float. O método float.as_integer_ratio() expressa o valor do tipo float em sua forma fracionária:

>>> x = 3.14159
>>> x.as_integer_ratio()
(3537115888337719, 1125899906842624)

Uma vez que a relação seja exata, será possível utiliza-la para obter, sem que haja quaisquer perda o valor original:

>>> x == 3537115888337719 / 1125899906842624
True

O método float.hex() expressa um tipo float em hexadecimal (base 16), o mesmo também conferirá o valor exato pelo computador:

>>> x.hex()
'0x1.921f9f01b866ep+1'

Sua precisa representação hexadecimal poderá ser utilizada para reconstruir o valor exato do float:

>>> x == float.fromhex('0x1.921f9f01b866ep+1')
True

Como a representação será exata, é interessante utilizar valores confiáveis em diferentes versões do Python (independente da plataforma) e a troca de dados entre idiomas diferentes que forneçam o mesmo formato (como o Java e o C99).

Uma outra ferramenta que poderá ser útil é a função math.fsum() que ajuda a mitigar a perda de precisão durante a soma. Ele rastreia “dígitos perdidos”, isso porque, os valores serão adicionados a um total em execução. Isso poderá fazer a diferença na precisão geral de forma que os erros não se acumulem chegando ao ponto de afetar o resultado final:

>>> sum([0.1] * 10) == 1.0
False
>>> math.fsum([0.1] * 10) == 1.0
True

15.1. Erro de representação

Esta seção explica o exemplo do “0,1” em detalhes, e mostra como poderás realizar uma análise exata de casos semelhantes. Assumimos que tenhas uma familiaridade básica com a representação binária de ponto flutuante.

Erro de representação refere-se ao fato de que algumas frações decimais (a maioria, na verdade) não podem ser representadas exatamente como frações binárias (base 2). Esta é a principal razão por que o Python (ou Perl, C, C++, Java, Fortran, e muitas outras) frequentemente não exibe o número decimal exato conforme o esperado:

Por que isso acontece? 1/10 e 2/10 não são podem ser representados exatamente ​​sendo frações binárias. Atualmente, quase todos computadores (julho de 2010) usam aritmética de ponto flutuante conforme a norma IEEE-754, e o Python, em quase todas as plataformas, representa um float como um “IEEE-754 double precision float” (“float de precisão dupla IEEE-754”). Os tais “doubles IEEE-754” têm 53 bits de precisão, por isso na entrada o computador se esforça para converter “0.1” pra fração mais próxima que puder, na forma J/2**N onde J é um número inteiro contendo exatamente 53 bits. Reescrevendo:

1 / 10 ~= J / (2**N)

como

J ~= 2**N / 10

e recordando que J tenha exatamente 53 bits (é >= 2**52, mas < 2**53), o melhor valor para N é 56:

>>> 2**52 <=  2**56 // 10  < 2**53
True

Ou seja, 56 é o único valor de N que deixa J com exatamente 53 bits. Portanto, o melhor valor que conseguimos obter pra J será aquele que possui o quociente arredondado:

>>> q, r = divmod(2**56, 10)
>>> r
6

Uma vez que o resto seja maior do que a metade de 10, a melhor aproximação que poderá ser obtida se arredondarmos para cima:

>>> q+1
7205759403792794

Portanto, a melhor aproximação possível de 1/10 como um “IEEE-754 double precision” é:

7205759403792794 / 2 ** 56

Dividir o numerador e o denominador por dois reduzirá a fração para:

3602879701896397 / 2 ** 55

Note que, como arredondamos para cima, esse valor é, de fato, um pouco maior que 1/10; se não tivéssemos arredondado para cima, o quociente teria sido um pouco menor que 1/10. Mas em nenhum caso seria possível obter exatamente o valor 1/10!

Por isso, o computador nunca “vê” 1/10: o que ele vê é exatamente a fração que é obtida pra cima, a melhor aproximação “IEEE-754 double” possível é:

>>> 0.1 * 2 ** 55
3602879701896397.0

Se multiplicarmos essa fração por 10**30, podemos ver o valor contendo os 55 dígitos mais significativos:

>>> 3602879701896397 * 10 ** 55 // 2 ** 55
1000000000000000055511151231257827021181583404541015625

o que significa que o número exato armazenados no computador será aproximadamente igual ao o valor decimal 0.100000000000000005551115123125. Versões do Python anteriores a 2.7 e a 3.1, esse valor era exibido pelo arredondamento dos 17 dígitos significativos, produzindo ‘0.10000000000000001’. As últimas versões, o Python está exibindo fração decimal mais curta que poderá ser convertida para o verdadeiro valor binário, o que resulta simplesmente em ‘0.1’.

>>> format(0.1, '.17f')
'0.10000000000000001'

Módulos como o fractions e o decimal tornam esses cálculos muito mais fáceis:

>>> from decimal import Decimal
>>> from fractions import Fraction

>>> Fraction.from_float(0.1)
Fraction(3602879701896397, 36028797018963968)

>>> (0.1).as_integer_ratio()
(3602879701896397, 36028797018963968)

>>> Decimal.from_float(0.1)
Decimal('0.1000000000000000055511151231257827021181583404541015625')

>>> format(Decimal.from_float(0.1), '.17')
'0.10000000000000001'